domingo, 3 de agosto de 2008

Entre o Leão e o Unicórnio




de Marina Colasanti



"No meio da noite de núpcias, o rei acordou tocado pela sede. Já ia se levantar, quando junto à cama, do lado da sua recém-esposa, viu deitado um leão.
- Na certa - pensou o rei mais surpreso do que assustado -, estou tendo um pesadelo.
E mudando de posição para interromper o sonho mau, deitou a real cabeça sobre o real travesseiro. Em seguida, adormeceu.
De fato, na manhã seguinte, o leão havia desaparecido sem deixar cheiro ou rastro. e o rei logo esqueceu de tê-lo visto.
Esquecido ficaria, se dali a algum tempo, acordando à noite entre um suspiro e um ronco, não deparasse com ele no mesmo lugar, fulvo e vigilante. Dessa vez, custou mais a adormecer.
Quando a rainha despertou, o rei contou-lhe do estranho visitante noturno que já por duas vezes se apresentava em seu quarto.
- Oh! Senhor meu marido - disse-lhe esta constrangida -, não ousei revelar antes do casamento, mas desde sempre esse leão me acompanha. Mora na porta do meu sono, e não deixa ninguém entrar ou sair. Por isso não tenho sonhos, e minhas noites são escuras e ocas como poço.
Penalizado, o rei perguntou o que poderia fazer para livrá-la de tão cruel carcereiro.
-Quando o leão aparecer - respondeu ela - pegue a espada e corte-lhe as patas.
Naquela mesma noite, antes de deitar, o rei botou ao lado da cama sua espada mais afiada. E assim que abriu os olhos na semi-escuridão, zac! Decepou as patas da fera de um só golpe. Depois, mais sossegado, retomou o sono.
Durante algum tempo dormiu todas as noites até de manhã, sem sobressaltos. Mas numa madrugada quente em os edredons de pluma pareciam pesar sobre seu corpo, acordando todo suado viu que o quarto real estava invadido por dezenas de beija-flores e que um enxame de abelhas se agrupava na cabeceira. Depressa cobriu a cabeça com o lençol, e debaixo daquela espécie de mortalha atravessou as horas que ainda que ainda o separavam do nascer do dia. Só ao perceber o primeiro espreguiçar-se da rainha, emergiu de dentro da cama, contando-lhe da bicharada.
-É que dormindo ao seu lado, meu caro esposo, cada vez mais doces e mais floridos se fazem meus sonhos - explicou ela, sorrindo com ternura.
E ele, desvanecido com tanto amor, pousou-lhe um beijo na testa.
Muitos meses se foram, tranqüilos.
Porém uma noite, tendo jantado mais do que devia à mesa do banquete, o rei acordou em meio ao silêncio. Levantou-se disposto a tomar um pouco de ar no balcão, quando, caracoleando sobre o mármore real do aposento, viu aproximar-se um unicórnio azul.
Não ousou tocar animal tão inexistente. Não ousou voltar para cama. Perplexo, saiu para o terraço, fechou rapidamente as portas envidraçadas, e encolhido num canto esperou que a manhã lhe permitisse interpelar a rainha.
- É a montada da minha imaginação - escusou-se ela. - Leva meus sonho lá onde eu não tenho acesso. Galopa a noite inteira sem que eu tenha controle.
Tão bonito pareceu aquilo ao rei, que na noite seguinte, quer por desejo, quer por acaso, no momento em que a mulher adormeceu, ele acordou. Lá estava o unicórnio com seu chifre de cristal, batendo de leve os cascos, pronto para a partida. Desta vez o rei não temeu. Levou-lhe a mão ao pescoço, alisou o suave azul do pêlo, e de um salto montou.
Unicórnios de sonho não relincham. Aquele levantou a cabeça, sacudiu a crina, e como se pisasse nos caminhos do vento, partiu a galope.
Galoparam a noite toda. Mas antes que o sol nascesse, quando a escuridão apenas começava a derreter-se no horizonte, os cascos mais uma vez pousaram no mármore. E a real cabeça deitou-se no travesseiro.
-Sonhei que vossa majestade fugia com a montada de minha imaginação - disse a rainha ao esposo, de manhã. - Mas estou bem contente em vê-lo agora aqui ao meu lado - acrescentou numa reverência.
O rei, porém, mal conseguia esperar pelo fim do dia. Tão rica e vasta havia sido a viagem, que só desejava montar novamente naquele dorso, e, azul no ar azul, descobrir novos rumos. Pela primeira vez as tarefas da coroa lhe pareceram pesadas, e tediosa a corte. Da rainha, só desejava que, rápido, adormecesse.
E a cada noite, mais diferente ficou.
Já não queria guerrear, nem dançar nos salões. Já não se interessava por caçadas ou tesouros. Trancado sozinho na sala do trono durante horas, pensava e pensava, galopando na lembrança, livre como o unicórnio.
Ressentia-se porém a rainha com aquela ausência. Doente, quase, de tanta desatenção, mandou por fim chamar a mais fiel das suas damas de companhia. E em grande segredo deu-lhes as ordens: deveria esconder-se debaixo da cama real, cuidando para não ser vista. E ali esperar pelo sono da rainha. Tão logo esta adormecesse, veria surgir um leão sem patas. Que não temesse. Pegasse as patas que jaziam decepadas à sua frente, e, com um fio de seda, as costurasse no lugar.
Tendo obtido da moça a promessa de que tudo faria conforme o explicado, deitou-se a rainha logo ao escurecer, pretextando grande cansaço. No que foi imediatamente acompanhada pelo rei.
Custava porém o sono chegar. Virava-se e revirava-se o casal real sobre o colchão, enquanto embaixo a dama de companhia esperava. E de tanto esperar, o sono acabou chegando primeiro para ela que, sem perceber, adormeceu.
Acordou noite alta, quando há muito o unicórnio vindo buscar o seu ginete. Assustada, não querendo faltar com a promessa e ouvindo o ressonar da rainha, rastejou para fora da cama. Lá estava o leão, deitado e imóvel. Lá estavam as patas à sua frente. Rapidamente pegou a agulha enfiada com longo fio de seda, e em pontos bem firmes costurou uma pata. Depois a outra.
Leões de sonho não rugem. Aquele levantou a cabeça, sacudiu a juba e firme sobre as patas retomou a sua tarefa de guardião. Nenhum sonho mais sairia das noites da rainha. Nenhum entraria. Nem mesmo aquele em que um unicórnio azul galopava e galopava, levando no dorso um rei para sempre errante."

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